quarta-feira, 14 de março de 2012

RAZÕES DE PARTICIPAÇÃO NA CANDIDATURA - DIRECÇÃO DISTRITAL DE ÉVORA


Caros colegas:

Apresentado um manifesto que é um compromisso perante todo o universo do SMMP e apresentado um programa que é a garantia de lealdade a esse compromisso e a toda a magistratura do MºPº, talvez importe encarar o contexto em que um e outro vão ser postos à prova e testar-lhes a resistência às dificuldades que se advinham, que já se anunciam e que certamente se comprovarão.

Não será por isso assim tão estranho que a propósito das razões de uma candidatura (onde no seu étimo, por ousadia que só o entusiasmo permite, podemos encontrar algo semelhante a «cândido») ou a propósito da militância no associativismo judiciário, goste-se ou não do «sindical» que lhe anda associado, se sinta imposta a necessidade de explorar uma imprópria escatologia que os tempos reclamam, porque os tempos não reclamam menos do que isso.

A justiça não se adapta à sociedade do espectáculo. É cada vez mais instrumental e submissa à economia e deixou de poder corrigir as desigualdades e os erros que aquela produz e continua a produzir. E eles são muitos, visíveis e até demasiado ostensivos se tivermos atenção à desigualdade dos sacrifícios pedidos aos funcionários públicos - e magistrados - e os regimes de excepção que se vão anunciando já sem pudor.

O Estado social não acabou, privatizou-se ou a sua privatização está em curso.
Os parâmetros implícitos consentidos vão permitindo que a precariedade se instale e se perpetue; que o desemprego galope e que o poder financeiro omnipotente adite aos desempregados uma nova classe ou condição social: os endividados; que a indignação e os indignados estejam a cansar-se, mereçam apenas a «compreensão» dos políticos e que o medo controle a sociedade.
A nossa passividade já serve como tema de tese ou de coluna de opinião no jornalismo estrangeiro.
A «percepção social» sobre a justiça consente o convívio quotidiano com a injustiça, sem solução à vista.
A «percepção social» sobre a justiça ou sobre a sua eficácia é também um novo chicote.
A legitimidade que era reconhecida à justiça parece estar sob suspeita e sujeita a uma nova tirania: a da «percepção social» sobre a justiça. Essa, em resultado de parâmetros implícitos consentidos, é uma percepção má, que distingue a justiça pelo desprezo generalizado ou pela divulgada e acrítica proposição: «não funciona» ou «é lenta». Não interessam, a essa «percepção social sobre a justiça», os factos que possam desmentir, estatisticamente ou não, essa censura e esse pré-juízo. É certo que mais não é que um «meme» social, uma ideia contagiante que exemplifica a selecção Darwinista dos mais aptos e que, reproduzindo a mesma ideia negativa sobre a justiça, programa a mente dos outros, dissemina por replicação essa ideia negativa e acaba por parasitar quem possa ter, quem tenha, ou quem queira ter uma ideia, uma afirmação ou uma constatação diferente sobre a justiça que a «percepção social» reproduz.
Uma «percepção social sobre uma justiça» incapaz, lenta ou ineficaz já infectou o contexto em que o debate e a militância no associativismo judiciário poderiam ter papel emancipador.
Um «meme» tão apto é capaz de nos distrair do que é importante ou, na pior das hipóteses, deixar-nos entregues ao medo e à conveniência suicida do silêncio.
Que ente colectivo é esse que dá pelo nome de «percepção social» sobre a justiça?
Que legitimidade pode reclamar para ajuizar sobre o desempenho da justiça, dos tribunais, dos magistrados ou dos demais actores judiciários?
Que substrato humano a sustenta?
Que sentimentos a explicam (o reconhecimento, a inveja, o desprezo, a conjectura)?
Parece que a «percepção social» sobre a justiça, não se sabendo como se forma, que interesses serve (talvez aqui não possamos ser tão cândidos enquanto candidatos!) ou como se transforma, condena os voluntários que desafiam essa fortaleza de anonimato omnidifuso a uma maldição de Tântalo.
Que importa a eficácia do sistema de justiça ou que importa a estatística que melhora ou não envergonha a comparação com outros, se a «percepção social» lhe é contrária, se ela faz calar, desautoriza e submete?
Pior, impede a esperança, vai servindo os níveis de audiência e da sociedade do espectáculo, onde hoje o divertido é excluir, sejam eles os «gordos», os «feios» ou os «incultos» ou onde quem se envolve em escândalos e casos judiciários não se sabe se é herói ou criminoso. Tudo se banaliza e a cega justiça também não escapa à comédia e à decadência da frivolidade mediatizada.
Estranha essa «percepção social» sobre a justiça ter assim tanto poder. A base social de tanta fortaleza será o quê, se a sociedade cada vez mais evidencia solidão? Que base comunitária lhe subjaz? A mesma que negligencia e deixa morrer no isolamento os seus idosos? Que consente reduzi-los à subsistência ou à escolha entre comer e comprar medicamentos? A que passa ocasionalmente numa esquina e diz a banalidade que faz títulos ou abre noticiários? A que dá uma opinião sem ter que a demonstrar? Uma realidade que se gera no ciberespaço ou nas redes sociais onde a febre da conectividade permanente marca o ritmo da vivência virtual, pessoal e social?
Mas a «percepção social» não tiraniza só a justiça. Ela é invocada a propósito da corrupção, da felicidade, do futuro, da austeridade, da suspeita de que as reformas serão simbólicas daqui a alguns anos, condicionando-as aos tais parâmetros implícitos consentidos, claro que consentidos através da «percepção social» que os legitima apenas porque aquela é invocada para os legitimar.
O contexto é também por isso de corrupção semântica, que vai suportando a organização da hipocrisia, onde as palavras já não valem o que significariam.

Poeta houve que disse ser urgente instituir o «serviço de distribuição da palavra ao país», um serviço que administre também, entre outras e com sapiência, a palavra «justiça».
A degenerescência da palavra, tantas vezes propiciada pela ciência omnipotente do presente (a economia), perverte e aliena. As palavras que correm nos jornais, na rádio, na televisão potenciam a imprecisão com que as empregamos, potenciam a desistência do pensar, hoje um esforço que causa angustia, que se evita ou que até se dispensa porque há os comentadores que tudo pensam e tudo interpretam e assim também falseiam a qualidade da democracia. Veja-se como a palavra «cidadania europeia» não tem, face à origem da crise económica e ao centro decisor da austeridade, qualquer forma de manifestação ou dimensão de reivindicação efectiva. Uma cidadania europeia que, por aparente paradoxo, não evita o conformismo, impõe a tutela externa e justifica a impotência.
É o sentido ou o significado do «voto» que também entra na corrupção semântica que se instalou.
Mas não é só a corrupção da semântica. É também a erosão da democracia que está latente num contexto de injustiça, de tempos sombrios, de mentira e de mão invisível.
O futuro não pode ser apenas o silêncio como resistência.
A degradação do poder judicial e a descrença na justiça, favorecidas pelas «percepções sociais» que as acomodam, também servem para criar o sentimento de que a justiça em democracia é um sistema incapaz de investigar e condenar os culpados.
Mas só em democracia se pode denunciar a corrupção.
Apesar da tirania da «percepção social» sobre a justiça – ou a manipulação que ela propicia –, o medo não pode paralisar, amedrontar e desorientar.
Temos que ser grandes ou melhores versões de nós próprios, como Rorty melhor disse, sem descrença na validade das nossas conquistas.
Todos os desafios de um novo paradigma se colocam também ao associativismo judiciário, que deve contrariar o «habitus» de uma rotina institucional que se apoia na hipocrisia, no conformismo e nas rotinas mentais.
Cabe-lhe também a responsabilidade da crítica, da emancipação pela crítica, pela revitalização da democracia, que saiba agir num mundo cada vez mais ciberdependente, onde as identidades colectivas se formam de modo selvagem, em permanente estado de febril conexão às redes mais diversas, em que a latente sensação de absentismo à conexão cibernética é sintoma de solidão maior.
O associativismo judiciário ou outro terá que revitalizar as solidariedades, a mutualização e as reais preocupações comuns.

A justiça é instrumento de emancipação e de iluminação. O tempo da emancipação não passou, o de viver iguais num mundo que permanecerá fatalmente desigual, mas em que o esforço de o fazer menos desigual valerá a pena.
Os magistrados do MºPº podem e devem ser agentes dessa emancipação, a que outros se devem juntar e a que nós nos devemos juntar.

O compromisso da Lista A também fala dessa emancipação e das vias possíveis. Não será mais um mero compromisso de papel.

Os obstáculos são muitos, como vimos, mas não temos que ter medo do fracasso. É necessário sujeitar-se ao perigo de errar, como disse João Paulo II, pois a verdade não se alcança sem a experiência do erro. Temos o direito de procurar e de errar.

Claro está que, no concreto, importa dinamizar a sociedade civil e os magistrados para estarem atentos às novas fronteiras do direito, promover melhor ambiente e melhor futuro ecológico ao serviço do bem comum, enquadrando a responsabilidade ambiental, social e criminal das empresas, melhorar e revitalizar a solidariedade na tutela jurídica ao idoso ou incapaz maior e na atenção ao sofrimento dos mais desfavorecidos e fracos, promover um efectivo estatuto à vitima de crimes, dinamizar as relações internacionais no combate ao crime grave transnacional, a cooperação e a harmonização legislativa num espaço de liberdade, segurança e justiça que não seja a soma de egoísmos nacionalistas, enfim, promover o pluralismo na reflexão e na intervenção, etc, etc.

Tudo isso está no horizonte, é o nosso firmamento.
O fundamento está claro também.
Não queremos a injustiça. A justiça é melhor que a injustiça, verdade tão antiga e aparentemente óbvia como Platão a enunciou na «A República/Politeia», mas que importa ir lembrando. Mesmo que a democracia onde a possamos defender seja frágil, falível, em deriva oligárquica, ou precária, só aí é possível a liberdade e a justiça social, uma liberdade que não tem que ser temida ou causar pânico, uma justiça social que seja pelo menos respeitada e humanista e que se não puder ser brilhante, que seja possível.
Não devemos acumular mais amargura e desilusão pela justiça, nem podemos ficar acostumados à impunidade, à corrupção e à injustiça que as «percepções sociais» nos vão servindo.
Entre agir ou intervir por medo e conformismo, entre ceder aos diversos interesses que massificam ou propiciam a indiferença, devemos estar no lado de quem age por entusiasmo, na dignificação da justiça e na sua valorização, valorizando e dignificando o Ministério Público, a sociedade que dele precisa e as novas gerações.

Candidatos da «Lista A» ao SMMP
Distrito Judicial de Évora.